quinta-feira, março 16, 2006

A cerejeira e o míope

Tinha uma árvore no meio da rua, no meio da rua tinha uma árvore. Também era poética a presença imperial da cerejeira na rua Vereador João Figueredo, centro de Balneário Piçarras. Num mundo que se rende, quase promiscuamente, ao imperativo da ocupação urbana em detrimento dos espaços verdes, a existência daquela árvore no centro de uma via pública era coisa quase surreal. Um estandarte majestoso da vida desafiando a lógica do planejamento urbano. Mas a cerejeira é hoje passado. A miopia de um homem não viu na obra divina nada além de um atrapalho para a segurança pública. Esse homem é o prefeito em exercício, Ivo Álvaro Fleith, que deu execução a uma idéia infeliz e egoísta. Não ouviu as vozes de quem cresceu acostumado à sombra e ao símbolo. O grandioso vegetal batizara a via com seu próprio nome: era a “rua da Árvore”. Sua existência ensinara assim que a vida sobrepuja os cadáveres que dão nome aos espaços públicos. Quem não conhecia a rua pela sua curiosa e famosa moradora? Tenho certeza de que por muito tempo os piçarrenses hão de referir-se à rua do mesmo jeito. “Pega aquela rua que tinha uma árvore e vira à esquerda...” A cerejeira, agora reduzida à lenha, era o que de mais original a cidade tinha. É menos um símbolo do passado, um ícone da vida e da história destruído arbitrariamente. Causa tristeza assistir a esse desprezo das instituições locais pelos elementos que justamente poderiam valorizar a história da cidade. Assim também foi a destruição do Hotel Candeias, submetido ao raciocínio pragmático e imediatista de um governo insensível aos valores da cultura. Lamento exaltar a singularidade e importância daquela cerejeira apenas hoje, quando apenas restam o tronco central e as raízes profundas agarradas àquele chão há mais de um século. Mas quem adivinharia que a miopia engendraria tal besteira? Que sobraria insensibilidade na mente de um mandatário? Que não haveria o mínimo de inteligência para conceber alternativas que conciliassem a segurança de motoristas e a vida de uma centenária piçarrense? Depois da consternação, percebo como a destruição da cerejeira deve nos encher de preocupação. O corte sumário, sem consulta popular, é sintoma de uma prática política vigente que despreza vontades coletivas. Em seu último dia, a velha cerejeira desnudou a face egocêntrica de um governo para quem a opinião de bobões sentimentais como eu não tem valor nenhum. Um governo que não precisa ouvir. Uma auto-suficiência que me dá medo. O que mais vão cortar?

sábado, dezembro 24, 2005

Natal em abril?

Dizem os entendidos, os respeitosos pesquisadores que buscam o Jesus histórico - o Nazareno de carne e osso -, que o mestre galileu não teria nascido no dia 25 de dezembro. Bem, dissessem isso alguns séculos atrás, teriam certamente virado churrasco humano em praça pública. Igual sorte seria a minha, se desfraldasse idéia tão herege assim e que, à época, recebia tratamento nada cortês dos inquisidores da Igreja. Isso porque a verdade não era necessariamente a verdade. Era uma invenção teológica convencionada pelos Santos Padres, batizada de dogma, que dispensava razão e exigia apenas aceitação cega e submissa. Tempos curiosos aqueles, em que religião tinha pavor da ciência. Fugia dela como o diabo da cruz. Mal sabia a Igreja que Deus mesmo, numa travessura necessária, havia infiltrado no homem o germe da ciência. Sim, o Criador havia tramado com o demo para que a religião perdesse a besta presunção de que detinha a verdade absoluta.
Depois de muitas pesquisas, os tais estudiosos concluíram que Jesus teria nascido em abril. Não me perguntem o dia, porque já seria demais exigir tanta precisão da ciência. De posse dessa forte suposição histórica, considerei se deveria propor, aqui, a mudança na data de comemoração do Natal. Vejo algumas vantagens. O tempo mais ameno, outonal, e para nós, do Hemisfério Sul, a chance de nos aquecermos ao redor de uma lareira acolhedora, aproveitando a precipitação de uma frente fria afobada.
Poderíamos também, por uma questão de economia, celebrar nascimento e morte de Jesus no mesmo dia. Afinal, para quem não sabe, é quase a mesma coisa. É como entrar e sair pela mesma porta. E Jesus o fez de maneira educadíssima. Primeiro, bateu à porta – entendam aqui uma alegoria à profecia de sua vinda. Depois, na terra, anunciou com antecedência sua saída, que aconteceu do jeitinho que desejava. Isso mesmo. Não compreendo – ou compreendo, mas não admito – por que muitos homens até hoje se pelejam por conta de acusações sionistas, destilando ódio em acusações contra judeus pela morte de Jesus. Ou então praguejam contra o jogo mole de Pilatos que, se escondendo por trás do lava-mãos, pensava tirar o corpo de qualquer responsabilidade sobre o destino do subversivo odiado pelo Sinédrio.
Na verdade, se eu fosse Jesus, não poderia pensar noutro desfecho mais apoteótico para sua saída desta tragédia humana que o espetáculo da Paixão. Se eu – vergonhosa imitação de homem – sei disso, tenho certeza de que o rabino não ignorava que, num mundo como o nosso, era preciso deixar rastros de sangue em sua passagem. Era imprescindível provar sua vitória gloriosa sobre a dor e o medo. Sabia, desde o início, de que iria precisar de judeus que o perseguissem e de romanos que o desprezassem. Porque assim seria desde então pelos séculos adiante. Homens – entre eles muitos cristãos – que o perseguiriam ou que desprezariam flagrantemente seu evangelho. A propósito disso, lembro o tratamento genocida dos brancos “civilizados” e cristãos aos indígenas “selvagens” e pagãos das Américas. Uma ensandecida traição à lei maior de que Jesus quis dar exemplo. Mas me rendo ao argumento de que mudar o Natal para o mês de abril desproveria o final de ano de sua atmosfera algo mágica e intimista. O feriado funciona quase como um freio na histeria de nossos dias. Ao aproximarmo-nos do dia 25, entramos em férias, reunimo-nos com a família, ocupamo-nos com os presentes. E assim ficamos até o ano novo. Num exercício de preguiça – ou de ócio reflexivo, se preferirem – que quase nos obriga a repassar a vida. Então, como há 500 anos, a verdade passa a ser irrelevante - não importa se Jesus nasceu em algum dia de abril. Importante é que todos precisamos de um natal no dia 25 de dezembro; de um natal para lembrarmos da família negligenciada, para deixarmos-nos tomar por alguma compaixão diante da infelicidade alheia, para, enfim, vermos que há algum sentido misteriosamente belo no que um hippie cabeludo disse há dois mil anos.

domingo, setembro 11, 2005

John Lennon, Tio Sam e Bin Laden

Estava no carro e o rádio despercebidamente ligado até uma velha balada me tomar a atenção. Era “Imagine”, do beatle cabeludo, numa versão editada com trechos de reportagens sobre o atentado ao World Trade Center em Nova Iorque. Ouvi a canção afundado em pensamentos profundos. Vi-me absorvido por uma certa melancolia, uma frustração, talvez exalada por tantas almas que neste mundo compartilham o desejo de paz e, desgraçadamente, vêem-no ainda tão à mercê dos brutos. Entendam-me: os brutos de hoje não arrastam suas fêmeas pelos cabelos, nem ceifam vidas com a lâmina de uma espada. Os brutos agora se vestem de civilidade e ainda dividem o mundo entre mocinhos e bandidos. Contra esses últimos, justificam os primeiros toda a virulência, todo o derrame de sangue inocente.

É curioso e ao mesmo tempo sombrio notar que o presidente da maior nação mundial veja o mundo sob perspectiva tão simplista, tão redutória. Essa miopia ianque – digo ianque porque cerca de 90% dos americanos concordam com a retaliação militar – faz com que não percebam que as “formigas” que lhe picam são as mesmas que são pisoteadas sem clemência pelos pés grandes e truculentos do Tio Sam. Grandes demais. Grandes a ponto de lhe dar muito trabalho qualquer esforço de se desviarem de pequeninos pontos que se movem, uma multidão de famintos que nunca ouviu falar de George Bush.

O presidente caubói (Bush é texano) revive o espírito que animava as palavras da dama de ferro, Margaret Thatcher, nos anos 80. Para a ex-primeira-dama inglesa, “a verdade é que a posse de arsenal nuclear evitou não apenas a guerra nuclear mas também a guerra convencional”. Da mesma forma, o homem da Casa Branca também acredita, ou é instruído a acreditar, na necessidade da corrida armamentista como forma de garantir a paz mundial. Parece não lhes ocorrer pensar que a escalada nuclear não tem fim e o desafio do diálogo, da diplomacia é resposta mais categórica e eficiente para a resolução do impasse que se instala nas relações internacionais. Bush pode esmagar Bin Laden e seus seguidores, mas não a idéia que os anima.

O ódio árabe pelos americanos não é gratuito. É uma resposta infeliz e raivosa à presença opressora dos Estados Unidos. As ações da gangue de Bin Laden são a radicalização do mal-estar árabe diante do (perdoem-me o clichê) imperialismo norte-americano. Assim como ninguém se reconcilia com o vizinho sob um clima de desconfiança mútua, as nações antagonistas só sentarão à mesa da paz se houver gestos de concessão. Bin Laden não é um herói dos oprimidos. É um sinal profético de um mundo em crise, à beira de um colapso. O mundo finalmente começa a exigir um novo mundo.