sábado, dezembro 24, 2005

Natal em abril?

Dizem os entendidos, os respeitosos pesquisadores que buscam o Jesus histórico - o Nazareno de carne e osso -, que o mestre galileu não teria nascido no dia 25 de dezembro. Bem, dissessem isso alguns séculos atrás, teriam certamente virado churrasco humano em praça pública. Igual sorte seria a minha, se desfraldasse idéia tão herege assim e que, à época, recebia tratamento nada cortês dos inquisidores da Igreja. Isso porque a verdade não era necessariamente a verdade. Era uma invenção teológica convencionada pelos Santos Padres, batizada de dogma, que dispensava razão e exigia apenas aceitação cega e submissa. Tempos curiosos aqueles, em que religião tinha pavor da ciência. Fugia dela como o diabo da cruz. Mal sabia a Igreja que Deus mesmo, numa travessura necessária, havia infiltrado no homem o germe da ciência. Sim, o Criador havia tramado com o demo para que a religião perdesse a besta presunção de que detinha a verdade absoluta.
Depois de muitas pesquisas, os tais estudiosos concluíram que Jesus teria nascido em abril. Não me perguntem o dia, porque já seria demais exigir tanta precisão da ciência. De posse dessa forte suposição histórica, considerei se deveria propor, aqui, a mudança na data de comemoração do Natal. Vejo algumas vantagens. O tempo mais ameno, outonal, e para nós, do Hemisfério Sul, a chance de nos aquecermos ao redor de uma lareira acolhedora, aproveitando a precipitação de uma frente fria afobada.
Poderíamos também, por uma questão de economia, celebrar nascimento e morte de Jesus no mesmo dia. Afinal, para quem não sabe, é quase a mesma coisa. É como entrar e sair pela mesma porta. E Jesus o fez de maneira educadíssima. Primeiro, bateu à porta – entendam aqui uma alegoria à profecia de sua vinda. Depois, na terra, anunciou com antecedência sua saída, que aconteceu do jeitinho que desejava. Isso mesmo. Não compreendo – ou compreendo, mas não admito – por que muitos homens até hoje se pelejam por conta de acusações sionistas, destilando ódio em acusações contra judeus pela morte de Jesus. Ou então praguejam contra o jogo mole de Pilatos que, se escondendo por trás do lava-mãos, pensava tirar o corpo de qualquer responsabilidade sobre o destino do subversivo odiado pelo Sinédrio.
Na verdade, se eu fosse Jesus, não poderia pensar noutro desfecho mais apoteótico para sua saída desta tragédia humana que o espetáculo da Paixão. Se eu – vergonhosa imitação de homem – sei disso, tenho certeza de que o rabino não ignorava que, num mundo como o nosso, era preciso deixar rastros de sangue em sua passagem. Era imprescindível provar sua vitória gloriosa sobre a dor e o medo. Sabia, desde o início, de que iria precisar de judeus que o perseguissem e de romanos que o desprezassem. Porque assim seria desde então pelos séculos adiante. Homens – entre eles muitos cristãos – que o perseguiriam ou que desprezariam flagrantemente seu evangelho. A propósito disso, lembro o tratamento genocida dos brancos “civilizados” e cristãos aos indígenas “selvagens” e pagãos das Américas. Uma ensandecida traição à lei maior de que Jesus quis dar exemplo. Mas me rendo ao argumento de que mudar o Natal para o mês de abril desproveria o final de ano de sua atmosfera algo mágica e intimista. O feriado funciona quase como um freio na histeria de nossos dias. Ao aproximarmo-nos do dia 25, entramos em férias, reunimo-nos com a família, ocupamo-nos com os presentes. E assim ficamos até o ano novo. Num exercício de preguiça – ou de ócio reflexivo, se preferirem – que quase nos obriga a repassar a vida. Então, como há 500 anos, a verdade passa a ser irrelevante - não importa se Jesus nasceu em algum dia de abril. Importante é que todos precisamos de um natal no dia 25 de dezembro; de um natal para lembrarmos da família negligenciada, para deixarmos-nos tomar por alguma compaixão diante da infelicidade alheia, para, enfim, vermos que há algum sentido misteriosamente belo no que um hippie cabeludo disse há dois mil anos.